Das Cinzas...
A chuva caía em gotas constantes e suaves sobre a pequena casa de encosta. Ali, no bairro mais tranqüilo e mais isolado da cidade, moravam apenas famílias pequenas que, ou migravam para a praia, ou viviam fora de casa nessa época do ano. Infelizmente, também é nesse pequeno bairro que se residem a maioria dos solitários. Sejam eles escritores, músicos, poetas, congressistas, gênios ou tolos, eles vivem sozinhos dentro de suas grandes casas. A casa citada anteriormente é onde vive o talvez, mais excêntrico deles.
Seu nome o tempo já fez questão de apagar, assim como sua vida, que já não pode mais ser chamada assim. Sua existência se resume à contemplação da vida alheia pela grande janela que se encontra na sua sala de estar. Há muito não tem contato humano. Preferiu se tornar um eremita naquela luxuosa casa a encarar as pessoas novamente. Por medo ou querendo proteger, seus ideais também já não são mais lembrados. Sua única companhia é, quem sabe, o diário que guarda a sete chaves em sua escrivaninha.
Nesse caderno de couro, já surrado pelo tempo, estão gravadas suas memórias, anteriores à sua exclusão do mundo e as posteriores, onde documenta seus dias de visualização e as descobertas que faz. Para ele esse é seu maior tesouro.
Sua aparência pode refletir seu estado lastimável. Pela falta de socialização, não cuidou mais de sua aparência. A barba e os cabelos por cortar não estão exatamente deploráveis, mas já alcançaram um estado crítico. Os cabelos, aliás, formam uma grossa juba castanha segura apenas por um rabo de cavalo mal feito. As roupas também não estão em bom estado. Gastas, quase um uniforme que ele usa dia sim e dia não, intercalando entre si. Por hoje escolheu o velho casaco azul-marinho que usava quando professor, a camisa azul-clara, as calças pretas e os sapatos confortáveis de andar em casa, quase sem sola.
O abandono o tornara um pouco mudo e um pouco surdo. Havia muito tempo não usava palavras. A despensa era abastecida ás vezes por um garoto que entregava os jornais e que gostava dele, apesar do pouquíssimo contato.
Se continuasse dessa forma em breve abandonaria de todo o mundo. Deixaria o corpo para trás e partiria de vez para o lado que parecia cobiçar todos os dias ao acordar em silêncio. Seu abandono era tal que possuía um único telefone e um computador sem internet, apesar de seu poder aquisitivo. A aposentadoria cobria tudo.
Hoje, no entanto algo estaria para alterar todo o curso da sua história. Por ser um bairro nobre, igualmente era um bairro cobiçado pela classe mais famigerada de todas: Os ladinos. Assim sendo, esta noite, quando o já envelhecido senhor se dirigia para sua sala de estar para se atualizar sobre o mundo, em seu quarto no segundo andar uma pequenina criatura adentrava o recinto com más intenções. Não por maldade, não por cobiça, e sim por necessidade. Seu nome é Robin e sua vida é um mistério quase tão grande quanto o do habitante da casa. Vestindo poucas roupas, apenas um casaco grande, uma camiseta que com certeza não era do seu tamanho e uma calça que ganhara de alguém na rua, a garota de aproximadamente quinze anos via no roubo sua sobrevivência. E por isso, nessa noite específica, decidira invadir aquela casa que parecia tão vazia. Para seu azar a casa não estava completamente vazia.
Os movimentos de ambos foram quase sincronizados. Enquanto o quase-morto senhor vagou por entre os cômodos se ajeitando, a jovem mulher foi conhecendo o andar de cima. Por coincidência tiveram a idéia de usar a mesma escada. A cara que os dois fizeram ao verem um ao outro, em andares diferentes, é indescritível. Apesar de tudo, a reação não foi rápida. A princípio o susto e em seguida o medo. Ele, já cansado pelo enclausuramento, ela, esguia por causa da vida nas ruas. Em segundos ela já tentava pular pela janela. Porém, um pedaço de sua roupa, culpa do tamanho, enganchou em um pedaço já madeira e o que veio a seguir não foi à esperada fuga, mas sim uma lenta e dolorosa queda.
Ele, assustado por toda a situação, chegou em seguida e encontrou a menina caída em um de seus arbustos. Para sorte dela ele desleixara com tudo, inclusive os jardins e a grama já crescia alta. Ele correu para lá, mancando com ar pernas semi-atrofiadas pela falta de exercício, amaldiçoando pela primeira vez em anos a não atividade física.
...
Essa é uma história conhecida, a falar a verdade. É óbvio o que ocorreu. O não-convívio com seres vivos tornou-o uma pessoa amargurada, no entanto, carente. Tratar da garotinha despertou nele os sentimentos escondidos e, mesmo com a circunstância, sentiu pena dela e quis que ela ficasse bem logo. Por outro lado, a rapariga se sentiu protegida. No primeiro instante temeu a reação dele. Nos seguintes, passou a acha-lo interessante. Quando viram, estavam tratando um ao outro como velhos amigos.
Ele redescobriu sua vida, abandonando o auto-aprisionamento. Ela passou a ter um lugar para ficar. Tornaram-se mestre e aprendiz e descobriram os segredos mais profundos um do outro. Tornaram-se amantes terrenos, é claro, mas muito mais no sentido místico. Livre das correntes que ele próprio havia imposto, o grande senhor Heracles, em sua mais recente encarnação, finalmente se viu livre também das maldições de sua ancestral madrasta Hera.
Pode novamente ter uma amante mortal e protege-la. Não mais seria um titã adormecido e sim um herói reencarnado. Seus vários retornos, antes tão iguais, haviam apenas o feito repetir a amarga experiência de ter amado e perder sua amada para si mesmo. No entanto, um contato inesperado de uma outra alma ancestral o fez despertar sentimentos cobertos pelo tempo desde os primórdios da humanidade.
Em algum lugar, um certo Zeus sorriu, e sacudindo um velho casaco de couro, deu alguns passos para dentro de um beco escuro, onde sumiu. Ele havia feito um belo trabalho ao indicar aquela casa para uma pequena ladra em busca de coisas para roubar.
1 Comments:
O texto pode ser legal... O ambiente tá bem montado, as personagens estruturadas e a conclusão tá interessante... Gosto quando vc mistura deuses na epoca atual... Mas como vc disse, nesse texto o problema tá no meio... Tá meio cliche... =S Vc falou de quem quiser fazer pode... Bom, se algum dia eu conseguir me inspirar... O que anda dificil últimamente... Afff... ¬¬
Beiojos, mô!! Te AMO!
pS: muito "BUM" pra vc!
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